LEONARDO LICHOTE
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – A capa de “Afim”, segundo álbum solo de Zé Ibarra, traz uma imagem crua, íntima, banal: o músico sem camisa, escovando os dentes, com espuma em torno da boca, supostamente olhando para um espelho que não aparece no quadro.
“Pra muitos, essa capa é um horror”, comenta o artista. “Eu estava entrando num modo que todo mundo entra hoje em dia. Me vi, nesses últimos anos, hiperparanoico com a minha imagem. Pensei: ‘Quero botar na capa a imagem que eu não quero ver de mim, que as pessoas não querem ver de mim. Sem filtro, livre de manipulação e de algoritmização”.
Ele mesmo, porém, pondera, numa torção maliciosa em seus próprios argumentos: “Apesar disso, sei que é uma imagem icônica, o que também é bom pro algoritmo de alguma forma. E claro que eu tô gatinho ali também”.
A foto e a reflexão de Zé Ibarra sobre ela tocam nas questões centrais que motivaram e que se mostram nas oito faixas de “Afim”. Num primeiro plano, está ali o desejo de tematizar -ainda que indiretamente em muitas canções- o mal-estar contemporâneo com a própria imagem e a forma como os relacionamentos têm se construído. Ambos problemas partem de um mesmo lugar, acredita o cantor.
“A gente se relaciona não como entes vivos, mas como produtos. E o artista ainda mais”, avalia Ibarra. “E eu comecei a sentir que eu estava consumindo as pessoas também. Costumo falar, brincando: ‘Eu não me relaciono, eu consumo gente’. E sou consumido. Só que isso é uma coisa horrorosa. ‘Afim’ também é uma vontade de sair desse lugar.”
Ibarra chega a definir esse estado contemporâneo como “o fim do amor”, expressão que depois ajusta para “o fim dos sentimentos”. “O fim do amor é muito forte”, justifica. “Só pode existir sentimento quando tem relação. Mas a gente não se relaciona mais direito. Não só com outros seres humanos, mas também de estar no mato e sentir aquela coisa magnânima, sentir amor por aquilo.”
Mesmo a ideia da não-monogamia, ao olhar de Ibarra, aparece muito mais como sintoma do que como resposta a essa situação. “É uma das grandes promessas do descompromisso. E das mais falaciosas, eu caí nelas”, reflete o compositor. “O descompromisso aparece travestido de liberdade. Tipo: ‘Eu posso, eu faço, eu sou, eu não preciso de ninguém’. Isso é uma maluquice, tá tudo errado. Fica todo mundo querendo uma despretensão, se sentindo super certo de si, livre e poderoso. Mas, na verdade, é só um deserto de afeto travestido de um empoderamento de si. Porque a gente precisa dos outros.”
Para além de um pensamento sobre os afetos do mundo, “Afim” também nasce de uma motivação de Ibarra redefinir -tanto musical quanto existencialmente- a maneira como sua figura artística é projetada e percebida. “Desde que comecei a tocar com o Milton Nascimento, construí uma imagem que deu muito certo, mas na qual eu estava me sentindo um pouco claustrofóbico”, explica o artista. “Uma coisa do cantautor, e do intérprete também, de violão e voz, que eu adoro fazer. Mas minha essência sempre foi banda, sempre foi rock progressivo, sempre foi arranjo, sempre foi algo mais grandiloquente. No Bala Desejo consegui fazer isso de alguma forma.”
“Afim”, identifica Ibarra, traz uma dose de veneno. “Tem uma sacanagem, uma safadeza, que eu queria colocar e nunca tinha colocado. Na vida, sou meio ácido, meio vagabundo. E a minha persona do ‘Marquês 256’ era a coisa menos vagabunda possível”.
No disco, essas ideias e desejos se materializam em canções como “Infinito em nós” -um sambalanço que ele diz que “ainda é super romântico, mas tem um veneninho”- e “Essa confusão” -parceria com Dora Morelenbaum de onde ele extraiu o título do álbum, a partir dos versos “Você sabe ser assim/ Difícil pra mim/ Mas repito/ Quero te fazer ficar a fim”.
Outra canção central é “Transe”. Segundo o próprio Ibarra, é a que melhor sintetiza seus interesses no disco. Musicalmente, pela maneira como equaciona jazz e pop. Ele cita, não por acaso, artistas como Negro Leo e Tyler, The Creator entre os que mais o interessam hoje.
Além das próprias canções, Ibarra pinçou também composições de outros compositores e compositoras de sua geração. De Maria Beraldo, gravou “Da Menor Importância”, dos versos “Enquanto eu não ouço sua voz/ Eu não sei dizer se é um homem ou uma mulher”.
“A questão queer é uma das grandes revoluções da nossa era, uma das coisas mais lindas do mundo”, diz o artista. Sophia Chablau entrou com “Segredo”, que se afina com a não moralidade, com a “safadeza” que ele queria para “Afim”. Ela também assina “Hexagrama 28” -do verso “E essa música não tem nada a ver com amor”, especialmente simbólico no contexto de “Afim”.
Há ainda Tom Veloso (“Morena”) e Ítallo França (“Retrato de Maria Lúcia”), que se comunicam de maneira mais nítida com o caminho de Ibarra anterior a “Afim”. Sinais de que, além de inaugurar novas perspectivas, o disco faz gestos de reaproximação com certo eixo original do artista.
“Eu não estava muito bem quando fiz o disco, a cabeça ruim demais”, lembra Ibarra. “Teve um ano que eu fiz muitos shows, 130, 140, o que me deu uma saturada. Me sentia meio longe da música e acuado na minha persona artística, por mais que o Bala seja um grande amor. Então eu fiz esse álbum pra ficar a fim de novo da música. Foi muito difícil pra mim, quase não lancei. Então, ‘Afim’ tem esse lado, além dessas ideias sobre a morte dos sentimentos, os algoritmos, o eu-mercadoria. Ou seja, é contra isso tudo.”
AFIM
Onde Nas plataformas digitais
Autoria Zé Ibarra
Gravadora Mr Bongo